O Brasil se prepara para adotar moedas digitais regulamentadas pelo Banco Central

Entrevista com o Head do Capco Digital Lab São Paulo, quem nos deu detalhes desta tendência que está se expandindo pelo mundo.

Quando refletimos sobre a evolução da tecnologia relacionada aos pagamentos e ao uso do dinheiro no Brasil nos últimos anos, o PIX vem imediatamente à mente, um sistema que, apesar de seus críticos, prosperou surpreendentemente ao ponto de já ser a principal forma de transferência de dinheiro entre indivíduos e empresas.

Mas as mudanças não param por aí, e uma nova modalidade, que pode ser considerada a evolução natural do dinheiro na era pós-covid, já está a caminho: as moedas digitais do Banco Central. Para entender melhor o assunto, a ComputerWeekly Brasil entrevistou Manoel Alexandre Bueno e Silva, Head do Capco Digital Lab São Paulo, quem nos deu detalhes desta tendência que está se expandindo pelo mundo.

1 - O que são Moedas Digitais de Banco Central (MDBC)?

Manoel Alexandre

São moedas oficiais emitidas pelos bancos centrais do mundo, porém, ao invés de serem em formato físico (notas ou moedas, por exemplo), usam formato digital. Ou seja, por terem sua emissão centralizada por uma autoridade nacional, é diferente de outras criptomoedas como o bitcoin, que é emitido por entes privados de forma pulverizada. Com isso, elas têm o lastro/aval da autoridade monetária do país e uma relação direta com a moeda corrente, o que tende a trazer vantagens em termos transacionais (ou seja, ser mais amplamente aceitas) e liquidez.

2 - O mercado e os consumidores estão prontos para o uso de MDBC?

Estamos fazendo parte de uma enorme digitalização em termos financeiros da população brasileira. Os brasileiros estão cada vez mais usando canais digitais para realização de transações e o sucesso do PIX é uma prova disto. Fintechs têm lançado contas digitais sem taxas, reduzindo algumas barreiras de entrada, e a internet tem se expandido mesmo para as cidades pequenas do país.

Por outro lado, segundo a pesquisa do Banco Central, “O Brasileiro e sua Relação com o Dinheiro”, 60% dos brasileiros ainda dão preferência ao uso de papel moeda em seus pagamentos, e a ocorrência de fraudes financeiras, muitas vezes envolvendo celulares, pesa para uma desconfiança neste processo de digitalização da moeda.

Ou seja, o processo de adoção do MDBC no país levará tempo e implicará em numerosos cuidados na implementação, de forma a fornecer segurança para a população.

3 - Quais são as implicações da adoção da moeda digital?

A adoção de uma moeda digital nos países pode trazer grandes vantagens ao sistema financeiro, incluindo diminuição de custos na impressão e circulação do papel moeda, além dos investimentos necessários para segurança. Porém, destaco que as MDBCs têm um potencial enorme de mudar a forma como a população lida com o dinheiro, permitindo a automação de alguns processos de compra, a criação de contratos inteligentes, e, é claro, a viabilização de pagamentos digitais mesmo sem conexão à internet, eliminando barreiras para a inclusão financeira e digital pelo país mesmo em locais com baixo acesso a rede, além de potencialmente diminuir custos de infraestrutura para o comércio. Pagamentos sem conexão à internet já estão sendo testados por outros países que estão implementando MDBCs, como China e Japão.

4 - Quais são as diferenças em relação a outros meios de pagamento digitais, como as criptomoedas, em particular o Bitcoin?

A principal diferença entre MDBCs e criptomoeda é a centralização. Uma criptomoeda é uma moeda digital descentralizada, suas transações são processadas e registradas em um blockchain, que é um livro de realização pública (contábil) que faz o registro de transação de moeda digital de forma que esse registro seja confiável e imutável. Como o nome indica, uma moeda digital do banco central é controlada por um banco central.

Outra diferença importante é que, enquanto as criptomoedas geralmente são tratadas como ativos financeiros, o CBDC funciona como dinheiro tradicional, usado para tarefas cotidianas como pagar contas, transferir para outras pessoas e economizar.

Já em relação à moeda tradicional, a diferença está na rastreabilidade. Cada unidade de moeda digital possui um código e uma marca únicos, sendo possível saber exatamente todo o histórico de propriedade da moeda, desde a sua emissão. Em caso de atividades comerciais ilícitas, é possível verificar quais caminhos a moeda percorreu, facilitando uma investigação.

5 - Quais são as tecnologias que suportam a segurança das transações financeiras usando MDBC?

A principal tecnologia por trás das moedas digitais é o blockchain. A tecnologia blockchain permite três características fundamentais para uma transação financeira: confiabilidade, programabilidade e disponibilidade de dados.

Confiabilidade: Um MDBC baseado em blockchain permite que os bancos centrais controlem a moeda enquanto protegem a privacidade e a independência do uso do MDBC para os usuários finais.

Programabilidade: Regras podem ser codificadas no protocolo para facilitar a conformidade.

Disponibilidade de dados: Sistemas distribuídos como blockchains garantem a disponibilidade e a resiliência dos dados, além de confiança e transparência em relação ao histórico de transações.

6 - Na sua opinião, como o Brasil se compara com outras nações que adotaram moedas digitais?

Temos diversos países espalhados por todo o mundo que estão discutindo as MDBCs. O maior projeto é o do Yen digital, na China, com implementação prevista para os próximos meses, porém estima-se que mais de 200 milhões de pessoas já estejam testando a solução.

O Brasil já é conhecido como um país de vanguarda em tecnologia do mercado financeiro e nosso banco central já iniciou o projeto de implementação do Real Digital, previsto para os próximos dois ou três anos. Porém, o sucesso do PIX tem acelerado os planos de implementação do Real Digital, que poderia ser lançado eventualmente em menos de dois anos.

O Banco Central está trabalhando em um projeto bastante ousado, incluindo contratos inteligentes, pagamentos sem internet e conexão com dispositivos IoT e, desta forma, o Real Digital poderá ser uma das mais completas soluções de MDBC a serem lançadas nos próximos anos.

7 - Qual é o mercado legal que regula as transações em moedas digitais?

Esse assunto ainda é insipiente. No caso das criptomoedas, como sua natureza é descentralizada, sua regulação internacional ainda está se formando através de um grupo de países mais influentes e ativos nessa modalidade. Mas cada nação está seguindo seu próprio caminho na construção de uma legislação específica.

Já as moedas digitais de banco centrais, diferentemente das criptomoedas, têm sua emissão e distribuição centralizada.

Aqui no Brasil ela será custodiada pelo Sistema Financeiro Nacional (SFN) e pelo Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), pois a ideia é ser uma extensão da moeda física.

Além disso, a moeda digital brasileira será desenvolvida com base nas regras determinadas pela legislação vigente, em especial pelas Lei Complementar 105/2001, que define sobre sigilo bancário e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

8 - Quais são os desafios a serem vencidos para que as moedas digitais sejam adotadas rapidamente?

Além do desafio da conectividade (o país ainda apresenta falhas de conexão de internet em áreas rurais e especialmente na região Norte), a “alfabetização digital” da população deve ser enfrentada através de projetos e parcerias.

Outro ponto bastante relevante é a preocupação com a segurança. Nota-se a quantidade de ocorrências de fraudes que tem surgido com a implementação do PIX, que trazem uma perda de confiabilidade do canal frente à população, dificultando a migração completa digital. A criação de modelos robustos de segurança, que garantam a tranquilidade e privacidade dos usuários, será essencial para o sucesso de qualquer iniciativa de MDBC no país.

9 - É possível que o Brasil venha a usar moedas criptográficas como moeda nacional, da mesma forma que o governo de Honduras em 2021?

A ideia do banco central é modernizar o sistema de pagamentos, mas a moeda digital não substituirá a emissão de dinheiro físico e sim atuar como uma opção complementar para os cidadãos. O real digital viria para facilitar as transações e aumentar a inclusão financeira, como a possibilidade de realizar a transferência de propriedades e do dinheiro devido de forma simultânea, ou em situações em que os itens adicionados a uma cesta de mercado são pagos automaticamente, dispensando a necessidade de enfrentar filas.

10 - Por que o uso de blockchain ou outras tecnologias poderia ser a solução para evitar a corrupção e tornar as operações mais eficientes?

O blockchain possibilita aos bancos centrais garantir a segurança e privacidade dos usuários, além da alta disponibilidade da moeda. O uso de MDBC poderá permitir uma maior transparência nas transações e a redução de custos usados hoje para combater fraudes, trazendo, desta forma, maior eficiência ao mercado.

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